Eslavismo em Tolstoi 2
Ana Karenina (Segunda parte)
A princesa sentou-se diante do samovar e tirou as luvas. Lacaios práticos em deslocar cadeiras sem ninguém o notar ajudaram os convidados a sentar-se. Logo se formaram dois grupos: um em torno da dona da casa, o outro, no canto oposto do salão, em volta de uma formosa embaixatriz de bem desenhadas sobrancelhas pretas, toda de veludo preto. Nos primeiros momentos, como sempre acontece ao iniciar-se uma reunião, a conversa, interrompida pelos que iam chegando, pelas chávenas de chá que se ofereciam e pela troca de cumprimentos, permaneceu hesitante.
-- É uma atriz extraordinária. Ver-se logo que estudou Kaulbach -- afirmou um diplomata no grupo da embaixatriz. -- Notaram como ela caiu?...
-- Por amor de Deus, não falemos da Nilson, já está tudo dito a seu respeito -- exclamou uma gorda dama loura, muito corada, sem sobrancelhas nem postiços, que envergaba um vestido de seda velho. Era a Princesa Miágkaia, a quem chamavam l'enfant terrible (Criança endiabrada) por causa da sua irreverência. Assentada entre os dois grupos, apurava o ouvido e tomava parte na conversa dos dois. -- Já ouvi hoje três pessoas dizerem-me a mesma coisa sobre Kaulbach. Parece que se tinham combinado. Não sei por que lhes caiu no gosto essa frase.
???
-- Isso já foi dito há muito -- Interrompeu, rindo, a embaixatriz. A conversa ia assumindo um tom agradável, mas demasiado anódino para durar muito. Só havia um meio infalível de salvar a situação: a maledicência. Era preciso recorrer a ela.
-- Não acham que Tuchkiêvitch tem qualquer coisa de Luís XV? -- voltou o diplomata, apontando, com um movimento de olhos, um belo moço louro à mesa.
-- Oh ! Sim ! É no mesmo estilo do salão. Por isso vem cá tantas vezes. Desta vez a conversa manteve-se: era divertido versar, por meio de alusões, um assunto interdido no local, a saber, a ligação de Tuchkiêvitch com a dona da casa.
Entretanto a conversa do grupo que se encontrava em volta desta flutuara um certo tempo sobre temas inevitáveis: a notícia da última hora, o teatro e a censura ao próximo. E também ali prevaleceu a maledicência.
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- Não ouviram dizer que a Maltíchtchieva, a mãe, não a filha, está fazendo um traje de diable rose (Diabo rosado)?
-- Não é possível ! Mas isso é delicioso !
-- Admira-me que , com a inteligência dela -- porque não é tola --, não sinta o ridículo disso.
Todos tiveram qualquer coisa a dizer para criticar e ridicularizar a infeliz Maltíchtchieva, e as frases crepitaram, alegremente, como uma fogueira que arde.
???
[Ha ha (não é assim na atual sociedade?]
Interessava-a especialmente uma jovem russa, dama de companhia de uma senhora doente, russa também, a quem todos chamavam Madame Stahl. Pertencia à alta sociedade e estava tão enferma que não podia andar, só aparecendo para tanto em virtude da sua doença, antes por orgulho, que assim o explicava a princesa, aquela senhora não dirigia a palavra nenhum aos russos presentes nas termas. A jovem russa, além de tratar de Madame Stahl chamava-lhe Várienka, e os demais Mademoiselle Várienka. Sem falar já que se Kitty gostava muito de observar a maneira como amiúde costumava dizer, experimentava uma simpatia inexplicável por ela e percebia, pela maneira como ela a olhava, que também era correspondida.
Não se podia dizer com justiça que Várienka não fosse jovem, antes parecia, contudo, um ser sem juventude: tanto se lhe podiam dar dezenove como trinta anos. Nos seus traços, apesar da cor doentia da pele, era mais bonita que feia. Também podia passar por bem feita de corpo, se não fosse a cabeça grande, desproporcionada em relação ao tronco pouco desenvolvido. No entanto, não devia agradar aos homens. Parecia uma flor bonita, ainda com ás pétalas, mas já murcha e sem perfume. Demais, faltava-lhe o que sobrava a Kitty: uma vida contida e a consciência do seu próprio encanto.
???
Kitty conheceu Madame Stahl, e essa amizade, juntamente com a de Várienka, não só exercia grande influência nela como q consolava do seu desgosto. Um novo mundo, muito diferente do seu, mundo todo elevado e nobre, se lhe revelou: dessa eminência pode julgar o passado com todo o sangue fora a sua até então existia uma vida espiritual na qual se penetrava pela crença. Essa religião não se parecia em coisa alguma com aquela que sempre praticará desde criança e que consistia em assistir à missa e às vésperas no asilo de viúvas, onde se encontravam pessoas conhecidas, e em aprender de cor com o sacerdote textos religiosos eslavos. Era uma religião nobre, misteriosa, que despertava os pensamentos mais elevados e os sentimentos mais puros e em que se acreditava não por dever, mas por amor.
Kitty aprendeu tudo isto sem que lho dissessem. Madame Stahl falava com ela como com uma criaturinha agradável, contemplando-a como quem recorda a sua própria juventude. Apenas uma vez lhe disse que as penas humanas só tinham consolação no amor e na fé e que para Cristo, na sua piedade para com os homens, não existiam penas insignificantes, logo mudando de conversa. Mas em todos os seus gestos, em todas as suas palavras, nos seus olhares "celestes", como Kitty lhe chamava, Kitty descobria "o que era importante", e o que até então ignorava.
Por mais elevado que fosse no entanto o caráter de Madame Stahl, por mais emocionante que se revelasse a história da sua vida, por mais brilhante que se mostrasse a sua conversação , Kitty soube ver nela certos traços de caráter que a desconcertaram. Quando lhe perguntava pelos pais, Kitty notava que ela sorria irônicamente, coisa contrária à caridade cristã. Reparou também que, de uma vez em que Madame Stahl recebeu um sarcedote católico, postou-se de tal modo que, ficando-lhe o rosto meio oculto por detrás de um abajur, sorria de forma significativa. Embora parecendo sem importância, a verdade é que estes dois pormenores perturbaram Kitty e levaram-na a duvidar de Madame Stahl. Pelo contrário, Várienka, só, sem família, sem amigos, nada lamentação e nada esperando após a sua triste decepção, contituía o tipo de perfeição com que sonhava. Aquele exemplo fazia-a compreender que, para vir a ser feliz, tranqüila e boa, como desejava, tinha de se esquecer de si mesma e amar o próximo. E Kitty desejou ser assim. Inteirada agora do "mais importante", já não se contentava em admira-la; entregou-se com toda a sua alma a essa vida que se abria diante de si. Através do que Várienka lhe contou sobre a mãe adotiva e outras pessoas, traçou para si mesma um novo plano de vida. Como Aline, a sobrinha de Madame Stahl, de quem Várienka lhe falara muito, Kitty pensava que, onde quer que vivesse, procuraria os pobres, ajudá-los-ia o melhor que pudesse, distribuiria Evangelhos e leria as páginas do livro santo aos enfermos, aos criminosos e aos morinbudos. A idéias de ler o Evangelho aos criminosos, como fazia Aline, seduzia-a muito especialmente. Mas só em segredo sonhava com tudo isso, sem nada dizer à mãe ou à própria amiga. Aliás, enquanto aguardava a oportunidade de pôr os seus planos em execução numa escala mais vasta, Kitty arranjou maneira, no balneário, onde havia tantos doentes e infelizes, de praticar as novas regras da sua vida, imitando Várienka.
A princípio a princesa apenas notou que Kitty se achava sob a influência de uma espécie de capricho, como costumava dizer, por Madame Stahl e por Várienka. Reparava que Kitty não só imitava esta nas suas atividades, mas até, involuntàriamente, no andar, na maneira de falar e de revirar os olhos. Mais tarde compreendeu quw, além da sua admiração por Várienka, na filha se estava operando uma importante mudança espiritual.
A princesa notou que Kitty à noite lia o Evangelho francês que lhe oferecera Madame Stahl, coisa que antes não fazia, e que se afastava das pessoas conhecidas da alta sociedade, preferindo-lhes os doentes sob a proteção de Várienka e muito especialmente uma família pobre, a do pintor Pietrov, que se encontrava enfermo. Kitty orgulhava-se de desempenhar o papel de enfermeira dessa família. Tudo isso estava muito cedo e a princesa nada tinha a recear, sobretudo tendo em conta que a mulher de Pietrov era uma senhora decente e que a princesa alemã, ao ter conhecimento das atividades Kitty, lhe chamara "anjo consolador". Tudo estaria muito bem, entanto, se não fossem os exageros.
Páginas ??? á ???
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